segunda-feira, 1 de julho de 2013

Porque me oponho a redução da maioridade penal

Sim, você leu certo. Eu não defendo a tão pedida redução da maioridade penal - em meu ver uma demanda que é fruto de uma mistura nefasta de desconhecimento, desejo de vingança travestido de clamor por justiça e uma vontade inesgotável de se retirar jovens "indesejáveis" das ruas. Fala se na redução da maioridade penal quando o rapaz pobre comete uma violência contra o establishment, ou contra a burguesia - mas não se vê esse furor quanto aos rapazes mortos diaramente nas favelas, ou quando o filhinho de papai rico mata e/ou estupra.
Mas não quero fazer disso só uma soapbox para meu desgosto com essa pauta. Vamos para os argumentos, um por um:

Nosso sistema prisional não é capaz.

Cenas de violência no Presídio de Joinville
O ambiente carcerário no Brasil merece destaque pela brutalidade, o descaso e a superlotação: nosso sistema prisional suporta cerca de 300 mil detentos, mas temos mais de meio milhão de presos (a quarta maior população carcerária do globo); Segundo o Depen (dados são de 2012), cerca de 170 mil estão presos sem terem sido julgados ainda, e em torno de 20 mil estão presos além de suas sentenças. Quase que rotineiramente, detentos são submetidos a mais abjeta violência tanto física quanto simbólica. 

São muitas vezes largados como animais, deixados em meio a sua sujeira, sem qualquer consideração por aqueles seres humanos ali largados. Esquece-se que, embora tenham infringido a lei, ainda são pessoas que lá estão detidas. Quando uma menina de 15 anos foi presa (em descaso com a lei) em Belém do Pará e estuprada coletivamente pelos cerca de 20 companheiros de cela, em 2007, não foram poucos os comentários online alegando que "ela merecia", porque "era uma bandidinha". 

Superlotação em SP
Celas para cinco são ocupadas por 13, 15, 20 presos. Faltam medicamentos e suprimentos médicos para prestar atendimento de saúde aos detentos. Agentes carcerários não raro "viram o olhar" frente a violência de dentro do Cárcere. E quando confronta-se o cidadão com essa violência muitas vezes física, a resposta não raro é "está sugerindo que se faça carinho nele"? Parece me as vezes que ainda não entendemos como povo que a função do sistema prisional não é vingança, mas sim a exclusão temporária e reabilitação. 

Em seu excelente Keimusho no Naka (Na Prisão) o quadrinista japonês Kazuicihi Hanawa traz um retrato comovente do sistema carcerário japonês - ainda desumanizante, mas sem precisar da violência quase visceral que marca as prisões no Brasil. No lugar da lotação e da brutalidade, uma frieza sistêmica onde o presidiário é tratado como um número, jamais olhado nos olhos e absolutamente tudo é cercado por burocracia após burocracia. Uma maneira "civilizada" de tratar o preso como coisa, e não gente. 

E mesmo lá, no tão "avançado" Japão, para a tão comum lógica brasileira de que tudo-fora-do-Brasil-é-melhor, ainda se vê a injustiça gritante: o relato de primeira mão de Hanawa foi fruto de uma prisão por um crime menor (porte de arma, que podia ser punido com multa e serviço comunitário), para o qual o escritor foi transformado em um exemplo. De certa maneira, Hanawa foi um preso político. 

Apenas uma minoria dos menores detidos cometeram crimes violentos.

Fonte: Pragmatismo Político
Certo que apenas no primeiro trimestre deste ano, a polícia de SP prendeu em média 10 menores por dia, e que o debate da redução da maioridade penal foi reacendido pelo brutal assassinato de uma dentista em São Bernardo do Campo, por dois menores. Mas o que se ignora é que a maior parte destas prisões não são por homícidios, estupros e similares - se faz forte o meme de que todo meliante no Brasil é um assassino-estuprador-terrorista em série, que se soltar vai recriar um filme de slasher nas ruas do país, quando a maioria é presa por furtos ou posse de drogas.

E segundo a Fundação Casa (a antiga FEBEM), dos 9.016 internos, apenas 83 cometeram latrocínio (roubo seguido de morte. Isto é: menos de 1% dos detidos. Não podemos julgar e legislar com base numa excessão - como o caso de São Bernardo do Campo, ou do jovem Victor Hugo Deppman, baleado durante um assalto.

E dentro dessa tentativa de julgar com base em um incidente excepcional, se esquece de que a lei não retroage - ou seja: mesmo que seja reduzida a maioridade penal, salvo um julgamento excepcional do STF, os assassinos de Victor Hugo e Cinthya Magaly Moutinho de Souza ainda estariam sujeitos às penas atuais. Mudar a lei não pode mudar uma sentença, salvo se para torna-la mais amena: dentro do sistema jurídico nacional, nunca pode se retroagir de maneira a prejudicar o réu.

A prisão não reabilita. E a sociedade não toma de volta

Junte ao padrão de bandido ser diferente
conforme a classe social do réu/presidiário
Não é raro ouvirmos o argumento de que se o criminoso não for "punido duramente", ele vai simplesmente reincidir - mas devido a fatores sociais tanto dentro quanto fora do sistema prisional, a pena de prisão é muitas vezes quase garantia de exclusão total da sociedade, e posterior reincidência no crime. Com um estudo de 2007 indica, o ambiente carcerário tem maestria na formação e "graduação" de infratores: colocados em meio a criminosos mais perigosos, o detento acaba formando seus vínculos sociais em um meio marcado pela ilegalidade. Mas isso não é tudo.

Não raros são aqueles condenados por crimes pelos quais já pagaram, independente de provas. “Ele tem passagem pela polícia” ou “ele já foi preso antes” parece ser condenação o bastante, mesmo quando as evidências são tênues. A marca do preso por não ser mais uma marca física - como o fora em tempos distantes - mas ainda é algo que persegue o detento pelo resto de sua vida. Mesmo com suporte legal, a maioria é rejeitada no mercado de trabalho. E esse não é um problema moderno. 

Em 1862, o estadista e escritor francês Victor Hugo já discorria sobre o problema carcerário em seu clássico "Os Miseráveis". Como muitos dos presos brasileiros, Jean Valjean é preso por um crime pífio, e perde 19 anos de sua vida por causa disso. Entra na prisão um homem assustado e que nunca teve oportunidades, para sair de lá embrutecido e odiando o mundo. Mesmo após sua redenção, o único caminho de Valjean para a vida fora da cadeia é adotar uma identidade nova, sendo hostilizado e perseguido sempre que seu "terrível" segredo era revelado. 

A lógica era simples: Jean Valjean era criminoso perigoso, pois esteve na prisão - logo seu lugar era na prisão, onde ficam criminosos perigosos. A sina do presidiário é usada como forma de condenar os já condenados, trancando os em círculo vicioso de condenações, fazendo os pagar por crimes que já foram pagos. Retomando a referência literária, essa lógica circular é usada de maneira notável na obra de Hugo: Acusado pelo roubo de uma maçã e confundido com Valjean, Champmathieu é um homem inocente punido pelo crime de outro: Afinal, Jean Valjean é um homem perigoso, e Mathieu só pode ser Valjean, logo Champmathieu é culpado, pois sabe-se que ele é um criminoso, logo ele só pode ter cometido um crime.

Especialmente se tratando de menores

Enquanto seguimos nesse debate a respeito de se devemos ou não jogar menores na cadeia, nos EUA os economistas Anna Aizer e Joseph J. Doyle Jr decidiram estudar a fundo os resultados da detenção de menores - e obtiveram evidências fortes de que isso é uma má ideia: os jovens infratores que foram condenados à prisão tinham uma chance 22% maior de reincidência e 13% de menor de se graduarem do que os que haviam recebido penas alternativas. 

Sugere-se agora que se reduza a maioridade penal para 14 anos. Alguns são menos extremos e dizem 16 - outros exageram e falam em 12. Alegam que isso é para reduzir o crime, mas sem visão de futuro não percebem que isso é só aumentar certamente a criminalidade no médio e longo prazo. Jogar uma criança ou adolescente em meio a criminosos adultos, enquanto se tira dela o acesso a escola, qualquer possibilidade de uma relação social estável e se dá a esse menor o estigma de ex-presidiário, qual resultado pode ser esperado além de um adulto criminoso, visto que a ela foram fechadas todas as portas fora essa?
E não, o Brasil não é "exceção" em ter a maioridade aos 18

Existem soluções além da cadeia para menores infratores. No estado americano do Illinois, se usa hoje monitoramento eletrônico e toques de recolher bem definidos e mantidos para os jovens que cometeram crimes - salvo para aqueles que cometeram homicídios e outros crimes gravíssimos, que vão para centros de detenção infanto-juvenis, ou para a cadeia em alguns casos - mas estes são minoria de uma minoria.

Justiça no Brasil é para os ricos.

A exemplificar pela munição usada.
Não é preciso frisar que o nosso sistema jurídico e policial são altamente injustos (mas aqui tem um artigo de 2004 que já fala sobre - e a situação piorou desde então). Temos um tratamento extremamente díspar entre o que recebe o infrator da classe média para cima - capaz de pagar bons advogados, com status social para manter, e "boa índole" - e o que é dado ao grosso dos nossos infratores. Pobres, com pouca (as vezes nenhuma) educação, geralmente desempregados e viciados em drogas, cada vez em maior volume pardos e negros, a estes se consegue no máximo um defensor público, quando tanto. 

Muitos são condenados a prisão por crimes que poderiam - e deveriam - receber penas alternativas: segundo o Conselho Nacional de Justiça, dois terços dos presos no Brasil não cometeram crimes violentos - apesar do meme de que "o cara matou, roubou, estuprou e sequestrou, tem que mofar na cadeia mesmo", a grande maioria cometeu pequenos furtos, foi presa por porte de drogas (quando isso ainda era crime) e outras infrações menores. 

A mesma disparidade se dá na relação social do acusado: enquanto o marginal (no sentido de "aquele a margem da sociedade") é tratado de antemão como "o bandido", o infrator de classe média para cima depende do grau do circo midiático formado ao seu redor. Quando a violência é particularmente notável - como Suzane von Richtoffen, que matou os pais (e que ainda assim ganha causa ao processar imprensa por "danos morais"), ou o Casal Nardoni, que jogou a filha pela janela - se reflete o mesmo ódio visceral que o pobre recebe, qualquer que seja o seu crime. Mas quando se trata do filhinho de família rica que se torna um dos maiores traficantes de drogas do Rio de Janeiro, este recebe uma biografia emocionante, pena alternativa em manicômio judicial "por ter bons antecedentes e ser de boa família" e um filme romantizando sua vida. 

É por justiça?

Por causa destes e outros fatores, não consigo acreditar que os pedidos em prol da redução da maioridade penal sejam movidos por um sentimento de justiça. Minha visão é de que é muito mais um desejo de vingança - como o que move o desejo pela legalização da pena de morte, ou que se exalta contra os grupos de defesa dos direitos humanos - ou por uma vontade de se "higienizar" as ruas, retirando o menor infrator de vista. No longo prazo, o único resultado crível de condenarmos jovens de 14 anos (ou até 12 como alguns pedem) a cadeia é um aumento considerável da criminalidade, conforme esses jovens saiam embrutecidos da prisão, e sejam excluídos por completo da sociedade novamente. 

Por isso me oponho a redução da maioridade penal: na prática combina empurrar os jovens infratores para o crime com ainda mais força, e uma medida higienista que busca retirar os "indesejáveis" da sociedade. Meta que é lamentavelmente defendida por pessoas que eu conheço, e que se declaram abertamente a favor de retirar "o pobre, o sujo, o maltrapilho, o viciado" da vista pública - violentamente se for necessário. 

Um comentário:

  1. Parabéns pelo artigo, concordo com vc em todos os aspectos e quem tem um pouco de raciocínio sabe que vc tem razão. Abraços!

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