quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A validade de movimentos sociais - parte I


"Não devemos aceitar sem qualificação o princípio de tolerar os intolerantes senão corremos o risco de destruição de nós próprios e da própria atitude de tolerância." - Karl Popper, The Paradox of Tolerance, Karl Popper, The Open Society and Its Enemies, Vol. I, Chapt. 7, n.4, at 265 (Princeton University Press 1971)
 Causas e movimentos sociais são uma questão complexa, multifacetada, e problemática. É muito fácil e trivial para que alguém não pertencente ao movimento possa acidentalmente ou deliberadamente desrespeitar um movimento ao tentar - de fora de sua perspectiva - estabelecer o que é e o que não é uma causa válida. Não é sua luta para definir se é "digna" ou não, assim por dizer.

Ao mesmo tempo é fácil para uma  um grupo em prol de uma causa se tornar insular, se trancar em uma câmara de eco de suas alas mais radicais e lentamente alienar seus membros mais moderados ao ponto de transfigurar-se em algo similar ao que juravam combater. E é desta situação que pretendo tratar aqui: Não de quando causas e movimentos sociais se tornam vítimas de repúdio, mas quando passam a de certa maneira a serem os agressores. Esta primeira parte aborda a gênese e os processos cognitivos envolvidos em movimentos sociais.

Gênese de movimentos sociais

Movimentos sociais não existem em um vácuo: por definição tratam se de ações coletivas, dentro da coletividade. Segundo Mario Diani, um movimento social é um processo distinto caracterizado pelos mecanismos através dos quais atores engajados em ação coletiva:

  • Estão envolvidos em relações de conflito com oponentes claramente identificados
  • estão ligados por densas redes informais
  • dividem uma identidade coletiva distinta. 
Diani, em conjunto com  Donatella Della Porta, frisa que essas são ações coletivas. conflitivas. "Aotres em movimentos sociais estão engajados em conflitos políticos e/ou culturais voltados para promover ou combater mudanças sociais. Por conflito queremos dizer uma relação opositiva entre atores que buscam controlar a mesma coisa - seja ela poder político, econômico ou cultural - e no processo fazer exigências negativas um sobre o outro; i.e demandas que se atendidas prejudicariam os interesses de outros atores. (Social Movements: An Introduction  2009, pg 20-21).

Movimentos sufragistas, por exemplo, não surgiram "espontaneamente" do meio do nada: são o resultado de um processo de inclusão da mulher que lhe dera acesso ao mercado de trabalho - e daí para a exploração de sua mão de obra, visando não a inclusão, mas a maximização de produção - mas lhe negava os direitos políticos - e dai para outras causas relacionadas a inclusão da mulher e a igualdade de gêneros, é um processo resultante das interações e reações de um status quo patriarcal frente - para o qual o controle sobre a mulher é uma questão crucial - a um movimento que visa erodir esse status quo, e tais questões vão muito além do mero voto. .

De maneira similar, o protótipo movimento negro pode ter surgido inicialmente como uma resistência aos regimes de trabalho escravo impostos aos negros, mas engana-se quem considera que resolver a situação "escravidão" seria o bastante para encerrar a necessidade da mobilização. O elemento óbvio (escravidão) é apenas uma faceta da causa maior (a exclusão do negro), que se fez manifesta após a abolição em políticas de exclusão, como as leis Jim Crow e as escolas segredadas nos EUA, o regime do Apartheid na África do Sul, ou a tão comum política "extra oficial" de tratar o cidadão negro como criminoso "preventivamente".

Vale notar que um movimento social pode buscar mudança social e a erosão do status quo a fim não de defender o "progresso" da sociedade, mas para levar a um "retorno as raízes" frente ao que vê como uma ameaça. O radicalismo islâmico, por exemplo, surge como uma reação frente as mudanças sociais exigidas para adequar-se a modernidade, e não apenas resiste a essas mudanças, como busca erodir o paradigma estabelecido por elas para retornar a um estado mais "puro" e imaginário.

Padrão similar nota-se dos neo-conservadores americanos (e sua busca por um místico "destino nacional" hegeliano - Bradley Thompson, 2011) e dos defensores da ditadura militar brasileira: incontentes com meramente preservar as coisas como são, visam retornar a um estado idílico, onde o "inimigo" não existia - e no caso dos Neocons, o forte desejo de "exportar" sua visão de mundo, a força se necessário, como visto nas intervenções militares "democratizantes" e o discurso beligerante dos republicanos contra a mera existência dos estados islâmicos. (Curiosamente levando a oposição internacional de dois movimentos político-sociais reacionários).

A relatividade da "resistência"


É importante notar que da mesma maneira que movimentos sociais considerados "legítimos", grupos como a KKK, o Talibã e o Nazismo (para citar exemplos extremamente radicais) começaram a partir de pessoas que se sentiam ameaçadas e vitimizadas pelo "outro". Apesar de uma visão mais crítica revelar facilmente quem é o opressor, a reducionista argumentação de que um movimento "de resistência" é automaticamente válido por ser vitimizado é inviável: Vitimização per se é uma questão subjetiva, e por si só não serve de critério para determinar validade de uma causa.


Da mesma maneira que sua gênese se dá em uma relação de conflito dentro do coletivo, a validação de uma causa se dá dentro das interelações desse coletivo, e não a partir das alegações do movimento em si. O movimento gay não é "mais válido" que os grupos em "defesa da família" (estes não raro voltados para a defesa de um único modelo familiar, nuclear e patriarcal) por que este alega ser discriminado, mas porque dentro do conjunto de ações relacionadas a sua pauta é perceptível que se trata do lado mais fraco deste conflito; o lado que busca mudança social para fim da inclusão de direitos a uma parcela da população (LGBT) contra o lado que visa a manutenção de um status quo onde esta parcela tem direitos reduzidos, quando não busca reduzir ainda mais os direitos deste grupo.

Porém, embora um observador externo e neutro possa avaliar hipoteticamente a validade dos lados em uma dada questão, há de se levar em conta a inviabilidade dessa posição neutra e não envolvida em relações de conflito.  Raras são a situações em que o hipotético observador neutro e não envolvido esteja realmente sem envolvimento com algum lado da causa; assim como os movimentos em si, pessoas não existem em um vácuo, e suas posições ideológicas dependem muito das interações com outrem.

Por mais ridículo que possa parecer, há um que de verdade quando se diz, por exemplo, que feministas querem "retirar direitos" de homens, e portanto é raro um homem não informado de causa que não se sinta prejudicado pela pauta; porém há de se levar em conta que esses direitos - ou melhor, privilégios - são em si mais excludentes do que o fim deles seria. Cristãos fundamentalistas tem razão ao dizer que o movimento gay quer cercear os "seus direitos", mas falham em ver que o direito a que tão fortemente se apegam é o direito de ofende e vilipendiar coletivamente homossexuais, e de manter o grupo que acusam de cerceamento sem direitos fundamentais - como adoção e casamento civil; Racistas estão certos ao dizer que o movimento negro "vai contra os seus direitos" - mas omitem o fato que vai contra seu direito de agredir e excluir pessoas unica e exclusivamente por seu tom de pele.

Visto em um vácuo, qualquer um pode se dizer "oprimido" ou vitimizado; a validação de uma causa não se dá pela causa em si, mas pelas relações de seus atores com outros atores dentro do coletivo. No mesmo passo que o movimento LGBT está na razão enquanto luta para cercear o discurso de ódio e garantir os direitos básicos dos seus, (mesmo ocasionalmente levando a ações mal pensadas e desnecessárias) nenhum nível de intolerância anterior justificaria caso o movimento LGBT passasse a lutar em prol " da proibição do casamento e do direito parental dos cristãos" - ou seja, caso a pauta se revertesse. Dentro deste contexto, os fundamentalistas gritando ditadura gay estariam corretos em descrever a causa assim.

Imunização contra crítica e a câmara de eco


Existem dois fatores que rapidamente levam a radicalização de setores dentro dos movimentos sociais, e que facilmente minam a validade do movimento como um todo, servindo tranquilamente para seus opositores como um espantalho facilmente desconstruído. Ambos advém de políticas de identidade, do senso de pertencimento a um grupo. O foco em uma identidade coletiva em si já oferece sua problematização, quando causas interrelacionadas ligadas a diferentes identidades - pois como coloca Stuart Hall, a identidade moderna não é única, mas fluída e multifacetada (1996, A identidade cultural na pós modernidade) - entram em conflito. Há ainda de se levar em conta que certas identidades se emprestam organicamente para "suplantarem" todas as outras; fundamentalismos religiosos, por exemplos, se posicionam acima e além de identidades de gênero, políticas ou nacionais. O problema das identidades de grupo é bem estudado, e recomendo os pareceres de Eric Hobsbawm e Akhil Gupta a respeito, como uma introdução.


O primeiro problema está ligado diretamente a como o grupo se relaciona dentro de si, e a tendência de elementos já radicalizados dentro do coletivo a considerarem qualquer expressão de crítica como traição, sabotagem ou ataque. Isso dá as caras em fundamentalismos religiosos - onde a expressão do descrente, do "imoral" e do secular é vista como "ataque a minha liberdade religiosa"; em grupos políticos em que dissidência é tratada a gritos de "comunista" ou "fascista" sem que se enderece aos pontos levantados pelo interlocutor; em grupos de minorias, onde a crítica a um discurso X de um membro daquela minoria é silenciada para não "desvalidar" sua expressão por que "o grupo já é oprimido"; e na defesa inconteste de discursos violentos por "serem resistência". Vale lembrar que tanto grupos revolucionários quanto reacionários caem na mesma falha. A presença desse fator na identidade "nerd" foi muito bem descrita aqui.

Raramente tal preocupação com a valorização da identidade alheia se faz presente, como visível, por exemplo, na apaixonada defesa à liberdade de expressão em apoio a lideranças religiosas, humoristas "politicamente incorretos" e celebridades polêmicas frente a repercussão de suas ações, comparadas a tentativas de censura quando a polêmica fabricada se volta para o lado dos "seus".

A segunda por vezes deriva da primeira, mas mais frequentemente surge como resultado do fracasso do coletivo maior em incluir os membros daquela identidade específica, e tem sido grandemente facilitado pelo advento de redes sociais: a tendência a segmentos de grupos identitários se isolarem "entre os seus" e evitarem contato com o "outro", ecoando as mesmas ideias - em geral vindas das vozes mais elevadas e radicalizadas - criando a ilusão de validação para as mesmas.

Uma forma disso é a criação de "espaços exclusivos", removendo de cena "quem não faz parte". Embora espaços assim possam ser relevantes para discutir questões sensíveis para um grupo, eles podem facilmente levar ao silenciamento de visões alheias, e a tentativa de monopolizar o discurso, fazendo do espaço "exclusivo" um espaço de "exclusão" - da mesma maneira, tais espaços podem ser criados para isolar o debate e manter ele "em seu devido lugar" ou como uma maneira de "resolver o problema" excluindo suas vítimas.

Redes sociais e comentários online tem servido tranquilamente para fortalecer esse fator dentro de sociedades ditas "inclusivas". Como notado por Elizabeth Bird (Seeking the Audience for News — Response, News Talk as Cultural Phenomenon., 2011), raros são os "debates" online em que um participante aborda diretamente o argumento do outro, rapidamente degenerando em repetições do mesmo argumento e ofensas disparadas contra o outro. Da mesma maneira, a possibilidade fácil de excluir do seu convívio online aqueles com quem discorda pode facilmente reduzir a rede "social" à uma câmara de eco onde só é permitida concordância.

Como notado por Lothar et al (Fragile States, 2012), o fracasso em estabelecer um identidade "acima" da identidade tribal é um fator essencial na radicalização e a escalação de violência em estados fragilizados. Em situações onde o "nacional" (quando mais ainda o global) não tem ressonância com o indivíduo, a tendência é o recuo em identidades locais e tribais, facilmente manipuladas para verem outros como "ameaça", levando a conflitos étnicos, como vistos no Afeganistão, na África Subsaariana e no Kosovo em 96, por exemplo. Da mesma maneira, estados autoritários (que não são necessariamente fortes) estimulam a adoção de uma identidade "nacional" acima de outras identidades, como forma de controle político ideológico da população.

Somadas essas questões podem facilmente levar ao fortalecimento de ideias radicais, do ódio contra a oposição, e da sensação de uso legitimado de violência verbal ou até mesmo física - como visto por exemplo em grupos homofóbicos, terroristas islâmicos, grupos racialistas como a KKK e a United Nuwaubian Nation of Moors, o ecoterrismo da ALF, ou a transfobia de algumas radfems. 

Há de se levar em conta que quando parte de um movimento que goza de legitimidade, as ações dessas parcelas não invalidam o movimento. Mas hão de serem criticadas e desconstruídas, e não protegidas por serem "a voz do excluído". A transfiguração de movimentos em grupos radicais, e as manifestações desses grupos serão abordadas na parte 2. 

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